Opinião
Democracia ou apartheid? É o que está em jogo (nas eleições em Israel)
O resultado destas eleições será avaliado pela coligação a que derem lugar. Essa decisão é muito mais importante do que à primeira vista parece. Sob a aparência de que tudo “está na mesma”, Israel atravessa um momento de excepção. Estão em causa a natureza do Estado e a da democracia israelitas.
O escritor Amos Oz publicou há dias um artigo em que afirma que a garantia de segurança para Israel é a formação de um Estado palestiniano. “A alternativa é uma ditadura de judeus fundamentalistas ou um único país em mãos árabes que mataria o sonho sionista.” Para Oz, é uma “questão de vida ou de morte” que esteve escondida na campanha eleitoral. “Se não houver dois Estados haverá um; e, se só houver um, ele será árabe.”
Disto pouco se falou na campanha. A preocupação dos eleitores era a economia, não o Irão e, muito menos, os palestinianos. Os israelitas não se interessam pelo tema porque não crêem que tenha solução nas “próximas gerações”: 63,5% dizem que o processo de paz não avançará, seja qual for o governo, porque o desacordo entre ambas as partes é demasiado largo para ser ultrapassado.
Hoje, perdidas várias oportunidades históricas, nem israelitas nem palestinianos defendem a solução “dois Estados”. São realistas. Não haverá em Israel uma maioria política capaz de fazer evacuar os colonatos. Há 600 mil judeus a viver em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia. Muitos já lá nasceram. “São nativos”, reconhece a jornalista Amira Hass, adversária da colonização. “A questão palestiniana é um problema sem soluções”, resume o historiador Tom Segev.
Mas, previnem ex-chefes da Mossad e do Shin Beth (segurança interna), estão de novo a crescer os riscos de explosão. A Autoridade Palestiniana (AP) está à beira da bancarrota depois de Netanyahu lhe ter cortado as transferências de fundos. Uma implosão da AP obrigaria o exército israelita a regressar à Cisjordânia, criando o risco de uma “terceira Intifada”. Uma vitória de Herzog e Livni pouco alteraria o statu quo. Mas teria um impacto simbólico, tanto no plano interno como na cena internacional.
A vaga messiânica
A inviabilização do Estado palestiniano tem um preço e reflecte uma polarização da sociedade israelita. O sionismo laico perde terreno enquanto cresce um sionismo messiânico que põe em causa a natureza de Israel. Oz não é ingénuo. A sua mensagem é: “Temo o futuro.” O impasse do processo de paz encobre a questão fulcral da natureza de Israel.
Como caiu a anterior coligação de Netanyahu? Por causa de um projecto de lei que definia Israel como Estado-nação do povo judeu. Dois ministros votaram contra: Tzipi Livni e Yair Lapid. "Bibi" convocou eleições. Quais são as implicações? Este texto, imposto pela direita nacionalista e pelos messiânicos, significa a subversão da identidade democrática de Israel: só o povo judeu teria direitos nacionais em Israel; as minorias apenas disporiam de direitos individuais.
Os israelitas árabes não se enganaram: a Lista Conjunta, que reúne os partidos árabes — mas englobando judeus como Avraham Burg, antigo presidente do Knesset — não deu relevo à “questão palestiniana” e concentrou-se na defesa da igualdade de direitos entre judeus e árabes no Estado de Israel.
Os sionistas messiânicos querem mudar a natureza do Estado. O sionismo foi um movimento nacional laico e democrático, com o objectivo de dar um Estado aos judeus da Europa. Os messiânicos querem “o renascimento do reino histórico de Israel”. O seu mais enérgico líder, Naftali Bennett, declarou em Dezembro que “o sionismo laico (...) esgotou o seu papel histórico e que [ele] está mandatado para receber o testemunho. (...) Aproxima-se o dia em que seremos nós a dirigir o país.”
Moshe Feiglin, da extrema-direita do Likud e vice-presidente do Knesset, expõe assim o seu projecto: “Fundar um regime judaico nacional, libertar a Terra de Israel e vencer os seus inimigos. Criar uma cultura judaica inteiramente fundada no Templo e concluir a reunião dos [judeus] dispersos.”
Se os sionistas laicos denunciam o risco de os judeus ficarem em minoria num Estado único ou binacional, os messiânicos também não são ingénuos. Têm consciência do “factor demográfico”. E têm respostas. O primeiro passo seria limitar a cidadania dos israelitas árabes. Começa a falar-se em coisas estranhas, como “transferência de populações”. O nacionalista Avigdor Liberman propôs um modelo original de “dois Estados”, baseado na anexação de territórios e na separação: as regiões com colonatos seriam integradas em Israel, as cidades de maioria árabe seriam transformadas em enclaves palestinianos, num território em “pele de leopardo”. É o esboço de um projecto de apartheid. Sob a banalidade destas eleições, esconde-se o principal: a travagem dos messiânicos e o futuro da democracia israelita.